domingo, 28 de outubro de 2012

O REGRESSO


A viagem de regresso foi atribulada. Não propriamente pelos caprichos do vento ou as investidas descabeladas daquele mar-oceano sem fundo - que não chegaram para vencer a ciências dos sábios e a audácia do capitão, embora causando estragos irreparáveis na caravela segunda -, mas porque os sobreviventes da odisseia marítima e da planície das árvores, se puseram todos de maleitas desconhecidas, empalidecendo e definhando a olhos vistos. Cada um no seu posto: os marinheiros mareando, a pouco e pouco mais incapazes de lidar o velame e o leme que os havia de levar a casa; o cronista escrevendo tremulamente, tremelicando, como se atacado de pavor ou gelo; os dois sábios - criaturas indo para o inverno da vida - exorbitando a sua condição de sábios de mapas e de pedras, para dizer coisas impensáveis e incompreensíveis a respeito do fundo do mar e suas conchas, que incluíam os abismos do céu e a lonjura das estrelas e outras quejandas charlas acerca do oiro e das esferas de prata, mais a quentidão das águas e a altura do Sol caindo a pique na Ilha das Árvores como uma espada de Dâmocles. Os de bordo - mesmo se eles próprios intermitentemente alucinados, congeminando apocalipses e delírio - diziam que os sábios tinham enlouquecido, tomados pelo demónio da febre, pois ficavam horas e horas a fio, a falar sozinhos - por vezes de noite... - deambulando pelo convés do navio e soltando grandes gritos sem nexo e fazendo grandes gestos desabridos, esbracejando que nem possessos. Estes sintomas - o mais intrigante sendo a cor de latão que tomavam as esferas rotativas dos olhos -, quando mais tarde foram reveladas as crónicas de então, ganharam um nome para a posteridade: a febre do ouro.
O cronista lá foi escrevendo o que podia, empapado em suores frios e estranhamente também em calores que descreveu como sendo capazes de derreter as fivelas dos cintos!... E, inspirado por dedução que vinha da muita leitura e pelo facto de não serem logo afectados os que ficaram a bordo, decidiu que as sezões tiveram origem na água que beberam do rio. Parecia o único a manter o espírito lúcido, apesar da grande tremedeira de mãos e queixos; e felizmente que assim foi, no entendimento do que viu e ouviu, pois o que fica escrito tem a força dum toiro. Assim é a palavra, o símbolo conceptual que anuncia as flores do espírito: também o tinha sido a egípcia "pedra da roseta" de Champollion; a supernova do Touro, visível pelos céus dos céus, em todos os planetas da Galáxia - entalhada numa laje do Arizona, pelos índios Navajos, juntos dos canyons e da Grande Montanha Sagrada; um poema inscrito na água, dum Debussy universal e único, em reflexos do que é móvel e perece, perdurando.
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em A Febre do Ouro, ed. litoral, pág 105

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