A
viagem de regresso foi atribulada. Não propriamente pelos caprichos do vento ou
as investidas descabeladas daquele mar-oceano sem fundo -
que não chegaram para vencer a ciências dos sábios e a audácia do capitão,
embora causando estragos irreparáveis na caravela segunda -,
mas porque os sobreviventes da odisseia marítima e da planície das árvores, se
puseram todos de maleitas desconhecidas, empalidecendo e definhando a olhos
vistos. Cada um no seu posto: os marinheiros mareando, a pouco e pouco mais
incapazes de lidar o velame e o leme que os havia de levar a casa; o cronista
escrevendo tremulamente, tremelicando, como se atacado de pavor ou gelo; os
dois sábios -
criaturas indo para o inverno da vida -
exorbitando a sua condição de sábios de mapas e de pedras, para dizer coisas
impensáveis e incompreensíveis a respeito do fundo do mar e suas conchas, que
incluíam os abismos do céu e a lonjura das estrelas e outras quejandas charlas
acerca do oiro e das esferas de prata, mais a quentidão das águas e a altura do
Sol caindo a pique na Ilha das Árvores como uma espada de Dâmocles. Os de bordo
- mesmo
se eles próprios intermitentemente alucinados, congeminando apocalipses e
delírio - diziam
que os sábios tinham enlouquecido, tomados pelo demónio da febre, pois ficavam
horas e horas a fio, a falar sozinhos -
por vezes de noite... -
deambulando pelo convés do navio e soltando grandes gritos sem nexo e fazendo
grandes gestos desabridos, esbracejando que nem possessos. Estes sintomas -
o mais intrigante sendo a cor de latão que tomavam as esferas rotativas dos
olhos -,
quando mais tarde foram reveladas as crónicas de então, ganharam um nome para a
posteridade: a febre do ouro.
O cronista lá foi escrevendo o que
podia, empapado em suores frios e estranhamente também em calores que descreveu
como sendo capazes de derreter as fivelas dos cintos!... E, inspirado por
dedução que vinha da muita leitura e pelo facto de não serem logo afectados os
que ficaram a bordo, decidiu que as sezões tiveram origem na água que beberam
do rio. Parecia o único a manter o espírito lúcido, apesar da grande tremedeira
de mãos e queixos; e felizmente que assim foi, no entendimento do que viu e
ouviu, pois o que fica escrito tem a força dum toiro. Assim é a palavra, o
símbolo conceptual que anuncia as flores do espírito: também o tinha sido a
egípcia "pedra da roseta"
de Champollion; a supernova do Touro,
visível pelos céus dos céus, em todos os planetas da Galáxia -
entalhada numa laje do Arizona, pelos índios Navajos, juntos dos canyons e da Grande Montanha Sagrada; um
poema inscrito na água, dum Debussy universal e único, em reflexos do que é
móvel e perece, perdurando.
-
em A Febre do Ouro, ed. litoral, pág 105
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