quarta-feira, 29 de maio de 2013

NO MAR OCEANO


Estes pensamentos tinha-os o comandante, enquanto o Sol começava a ocultar-se atrás do horizonte do mar. Aí assaltaram-no outras preocupações. Não era já o medo de viajar de noite, no mar tenebroso: a luta terrível, entre a claridade e o negrume, a dar-se - cada vez mais duvidava de que isso acontecesse do modo julgado por todos... - seria a fronteira exacta das junções das conchas e, sabia-o agora, o horizonte ainda estava bem longe. Já não era também a dúvida de que falhasse o método de orientação pela Safira do Outono e pelas tábuas e cálculos, ou o método de orientação pela estrelinha que indicava o Norte - e, por consequência, os outros pontos cardeais -, que lhe parecia mais seguro. Se o céu estivesse toldado dum lado, orientava-se pelo outro. Mas... se a tapação fosse total, poderia saber, ao certo, para onde ia? Foi nesse instante que percebeu a grande embrulhada em que se metera. Nem os sábios - nem ele - tinham previsto semelhante percalço. Ou teriam? Mais dia menos dia, mais noite menos noite... isso aconteceria. Era quase certo! Como faria então? Teria de confiar na proverbial bonomia do Deus-bom - tantas vezes traída por alguma incontinência incontida... alguma fúria desmiolada, tão possível nas gentes quanto nos deuses!... -, ele que sempre e só confiara em si  mesmo e na sua ciência de marear? Seria capaz de orientar-se pela direcção das ondas? Agora o caso era outro. Entrara pelo mar-oceano e já não tinha pontos de referência, a não ser as estrelas e o Sol. Se isso falhasse... Além disso, uma tempestade podia fazê-lo perder muito tempo e tinha contados os mantimentos de bordo. A marinharia iria sacando um ou outro peixe... mas receava que a pesca rareasse ou mesmo acabasse de vez, na lonjura do mar. Isto era o pior; porque, afinal, sempre mantinha a secreta impressão de que seria capaz de saber para onde estava virado, mesmo se não pudesse ver o Sol e as estrelas. Nem terra. Confiava no seu instinto de orientação!... Qualquer coisa que lhe puxava o peito na direcção do Norte (embora nada soubesse do eixo magnético do planeta!...). Gabava-se de ter esse dom.
Entretanto, fez-se noite escura. O navio dobrara o cabo das trevas e, sendo o vento favorável e o mar dócil, a viagem prosseguiu rumo à esperança.
Caíra o segundo mito e a tripulação voltou a exultar de contentamento. Ao segundo dia, a brisa manteve-se.
O veleiro navegava agora a sete nós - curiosamente assim chamados (ou talvez isto não tenha nada de curioso ou estranho...) -, medidos a partir duma corda com nós que se estendia pelo esteiro do navio, atada à ré; sete deles se liam sobre a espuma, oito se afogavam debaixo dela.
A concha do mar metamorfoseava-se agora em cambiantes que iam do cinzento chumbo ao bordeaux; as vagas alteavam, modeladas e longas, levemente tremeluzentes, bem cadenciadas. A caravela subia e descia por elas abaixo e acima, na ponta dos pés, acariciando os seus contornos, imitando o cisne do lago que terá inspirado Tchaikovsky.
Fez-se uma segunda noite e a Safira do Outono lá despontou, a luzir no firmamento; a terra desaparecera há muito, tanto tempo que parecia a vida já vivida, para sempre perdida na eternidade ao contrário.
Só céu e mar. Só ébano de ínfimos reflexos de luz na crista das ondas e uma fosforescência esperançosa na rota do veleiro. Mas tão raros, tão esparsos os reflexos da pálida luz, que os navegantes mal percebiam de onde vinham. Se das luzes de  bordo, se das pequeníssimas luas ou das estrelas que vagabundeavam no firmamento e ousavam flutuar no oceano, sobre a cachoeira das vagas, quais lantejoulas desbotadas...
Ao terceiro dia, o tempo mudou e quando a noite veio, abateu-se uma enorme tempestade sobre o navio. Não choveu nem a temperatura mudou muito, embora o ar estivesse mais húmido. Mas durante horas, deixou de ver-se o céu, carregado de nuvens. Soavam as trombetas do vento, o cisne branco das asas brancas estremeceu na escuridão medonha, transparente e opaca; o mar urrava, bramindo, enfurecido; a marinharia julgou chegada a morte, no estertor dum violoncelo indo para os graves, ao limite do sentir e do crer. Ter-se-ia chegado a Ragnorak, onde os deuses e os gigantes travam a batalha final? 
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em A FEBRE DO OURO, pp 145/6

7 comentários:

  1. Grande Poeta, um texto poético maravilhoso! Interpretei-o como sendo a nossa caminhada pela vida com todos os obstáculos e dúvidas que nos cercam e que vamos tentando contornar sempre com a esperança de que se faça luz, que a bonança aconteça, que encontremos o norte. Um beijinho e bom domingo. Ailime (Será que o meu pensamento estará correcto? E sempre as minhas eternas dúvidas...)

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  2. Estilo impecável, Vieira Calado, pura poesia do começo ao fim ...Enquanto o navio quase afundava, as estrelas, indiferentes, vagabundeavam no céu...Eu não disse? Beijo e ótimo domingo!

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  3. Mais um excelente texto... diverso, embora, dos belos versos a que nos acostumou o mestre e amigo! meu abraço, boa semana.

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  4. Que linda deve ser a história de seu livro, anotei o nome para assim que for a capital comprar.
    Tive uma professora de literatura que sempre falava em ti, uma pena que perdi contato com ela. Queria contar a ela que te conheci virtualmente.
    Bjos e tenha um ótimo início de semana.

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  5. Depois de um tempinho ausente cá estou!
    Texto maravilhoso e bem interpretado.
    Abraços e ótima semana!

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  6. Olá!
    Um texto muito bem escrito, aventura e poesia. Parabéns!

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