Estes pensamentos tinha-os o comandante, enquanto o
Sol começava a ocultar-se atrás do horizonte do mar. Aí assaltaram-no outras
preocupações. Não era já o medo de viajar de noite, no mar tenebroso: a luta
terrível, entre a claridade e o negrume, a dar-se -
cada vez mais duvidava de que isso acontecesse do modo julgado por todos... -
seria a fronteira exacta das junções das conchas e, sabia-o agora, o horizonte
ainda estava bem longe. Já não era também a dúvida de que falhasse o método de
orientação pela Safira do Outono e
pelas tábuas e cálculos, ou o método de orientação pela estrelinha que indicava
o Norte - e, por
consequência, os outros pontos cardeais -,
que lhe parecia mais seguro. Se o céu estivesse toldado dum lado, orientava-se
pelo outro. Mas... se a tapação fosse
total, poderia saber, ao certo, para onde ia? Foi nesse instante que percebeu a
grande embrulhada em que se metera. Nem os sábios -
nem ele - tinham
previsto semelhante percalço. Ou teriam? Mais dia menos dia, mais noite menos
noite... isso aconteceria. Era quase certo! Como faria então? Teria de confiar
na proverbial bonomia do Deus-bom -
tantas vezes traída por alguma incontinência incontida... alguma fúria
desmiolada, tão possível nas gentes quanto nos deuses!... -,
ele que sempre e só confiara em si mesmo
e na sua ciência de marear? Seria capaz de orientar-se pela direcção das ondas?
Agora o caso era outro. Entrara pelo mar-oceano e já não tinha pontos de
referência, a não ser as estrelas e o Sol. Se isso falhasse... Além disso, uma
tempestade podia fazê-lo perder muito tempo e tinha contados os mantimentos de
bordo. A marinharia iria sacando um ou outro peixe... mas receava que a pesca
rareasse ou mesmo acabasse de vez, na lonjura do mar. Isto era o pior; porque,
afinal, sempre mantinha a secreta impressão de que seria capaz de saber para
onde estava virado, mesmo se não pudesse ver o Sol e as estrelas. Nem terra.
Confiava no seu instinto de orientação!... Qualquer coisa que lhe puxava o
peito na direcção do Norte (embora nada soubesse do eixo magnético do
planeta!...). Gabava-se de ter esse dom.
Entretanto, fez-se noite escura. O navio dobrara o
cabo das trevas e, sendo o vento favorável e o mar dócil, a viagem prosseguiu
rumo à esperança.
Caíra o segundo mito e a tripulação voltou a exultar
de contentamento. Ao segundo dia, a brisa manteve-se.
O veleiro navegava agora a sete nós -
curiosamente assim chamados (ou talvez isto não tenha nada de curioso ou
estranho...) -,
medidos a partir duma corda com nós que se estendia pelo esteiro do navio,
atada à ré; sete deles se liam sobre a espuma, oito se afogavam debaixo dela.
A concha do mar metamorfoseava-se agora em
cambiantes que iam do cinzento chumbo ao bordeaux;
as vagas alteavam, modeladas e longas, levemente tremeluzentes, bem
cadenciadas. A caravela subia e descia por elas abaixo e acima, na ponta dos
pés, acariciando os seus contornos, imitando o cisne do lago que terá inspirado
Tchaikovsky.
Fez-se uma segunda noite e a Safira do Outono lá despontou, a luzir no firmamento; a terra
desaparecera há muito, tanto tempo que parecia a vida já vivida, para sempre
perdida na eternidade ao contrário.
Só céu e mar. Só ébano de ínfimos reflexos de luz na
crista das ondas e uma fosforescência esperançosa na rota do veleiro. Mas tão
raros, tão esparsos os reflexos da pálida luz, que os navegantes mal percebiam
de onde vinham. Se das luzes de bordo,
se das pequeníssimas luas ou das estrelas que vagabundeavam no firmamento e
ousavam flutuar no oceano, sobre a cachoeira das vagas, quais lantejoulas
desbotadas...
Ao terceiro dia, o tempo mudou e quando a noite
veio, abateu-se uma enorme tempestade sobre o navio. Não choveu nem a
temperatura mudou muito, embora o ar estivesse mais húmido. Mas durante horas,
deixou de ver-se o céu, carregado de nuvens. Soavam as trombetas do vento, o
cisne branco das asas brancas estremeceu na escuridão medonha, transparente e
opaca; o mar urrava, bramindo, enfurecido; a marinharia julgou chegada a morte,
no estertor dum violoncelo indo para os graves, ao limite do sentir e do crer.
Ter-se-ia chegado a Ragnorak, onde os deuses e os gigantes travam a batalha
final?
.
em A FEBRE DO OURO, pp 145/6
Grande Poeta, um texto poético maravilhoso! Interpretei-o como sendo a nossa caminhada pela vida com todos os obstáculos e dúvidas que nos cercam e que vamos tentando contornar sempre com a esperança de que se faça luz, que a bonança aconteça, que encontremos o norte. Um beijinho e bom domingo. Ailime (Será que o meu pensamento estará correcto? E sempre as minhas eternas dúvidas...)
ResponderEliminarEstilo impecável, Vieira Calado, pura poesia do começo ao fim ...Enquanto o navio quase afundava, as estrelas, indiferentes, vagabundeavam no céu...Eu não disse? Beijo e ótimo domingo!
ResponderEliminarMais um excelente texto... diverso, embora, dos belos versos a que nos acostumou o mestre e amigo! meu abraço, boa semana.
ResponderEliminarQue linda deve ser a história de seu livro, anotei o nome para assim que for a capital comprar.
ResponderEliminarTive uma professora de literatura que sempre falava em ti, uma pena que perdi contato com ela. Queria contar a ela que te conheci virtualmente.
Bjos e tenha um ótimo início de semana.
Um magnífico texto poético !
ResponderEliminarDepois de um tempinho ausente cá estou!
ResponderEliminarTexto maravilhoso e bem interpretado.
Abraços e ótima semana!
Olá!
ResponderEliminarUm texto muito bem escrito, aventura e poesia. Parabéns!