sábado, 26 de outubro de 2013

FANTASMAS


A estrada do mar luzia na distância, reverberando os reflexos do Sol, como escamas de prata que se acendiam e desvaneciam, reacendendo-se de novo, numa teia viva e brilhante. O esteiro do navio, feito de espuma e pequenos redemoinhos de água que se iam alargando e dispersando em irregulares círculos aleatórios, ou fractais, abria-se num ângulo sempre igual, reanimando a configuração plurifacetada dos reflexos do Sol.
- Ou então... - continuou - a cabeça era aquela coisa que se via na parte de cima do corpo... - fez um gesto com as mãos, quantificando - e que era mais larga que os ombros... 
O biologista, a não ter ficado para sempre na planície, teria tido a mesma sensação que teve Darwin, confrontado com a diversidade biológica dos Galápagos. Em vez dos familiares lagartos-gola... tinha pela frente um clamidossaurus, em posição de defesa... ou guerra...
– Pareciam fantasmas!
- Fantasmas?! - o cartógrafo fez um trejeito descrente com os beiços ressequidos.
– Percebi que vocês tinham abatido alguns... - insinuou
- E abatemos! À segunda carga bateram todos em debandada...
- Vejamos então! - disse o cartógrafo, passando a mão pela testa e procurando sistematizar os raciocínios. - Vocês foram atacados com setas e essas setas só poderiam ter sido atiradas por arcos, não é? 
- Julgo que sim. Mas também nos atacaram com uma espécie de puas muitíssimo finas e curtas, que não sei como eram atiradas... À mão era impossível. Mas nenhum de nós viu os arcos...
Zarabatanas ou setas... ou ambas, tanto faz. Para ele eram setas.
- Bem!... - comentou o sábio, em jeito de esclarecimento - Vocês foram atacados, não por fantasmas, não por simples animais, porque uns e outros não poderiam usam flechas nem arcos... mas por gentes!
 - Sim. - disse o marujo, encostando-se à amura, junto ao castelo da popa, depois de ter dado a impressão que ia dizer que não. - Fomos atacados por gente do outro mundo!
A figura mitológica de Cupido, atirando cândidas setas aos mortais e abrasando corações incautos, nunca se desenhara na mente dos ilhéus do Norte. E mesmo que assim fosse, tornava-se evidente que naquela ilha do Sul, ele teria de ser identificado mais com Plutão... que Vénus!
- Gente de outro mundo, pois!... - precisou o sábio; mas a nuance terá escapado ao comandante. - Mesmo que fantasmas possam atirar setas com um arco ou por outro processo qualquer, não é de crer que sejam vulneráveis a balas de espingarda... - revirou os olhitos espertos na direcção donde vinham e esboçou um gesto rápido. - Vocês foram atacados pelas mesmas gentes que nos atacaram da primeira vez, quando desembarcamos na ilha, em pleno dia, no meio das árvores...
A imagem irreal, quase fantasmagórica, daqueles colossos que povoavam a planície, bailava-lhes a todos no espírito. Eram gigantes desconhecidos que emanavam uma força telúrica. Tinham-nas visto desde que chegaram e eram um dos enigmas maiores da ilha. Talvez em si se encerrassem todos os mistérios que os enleavam, e não fosse possível compreender os ataques da véspera e o comportamento hostil dos habitantes da ilha, sem compreender a própria ilha, vegetação, clima e, em última análise, os seus deuses.
em A FEBRE DO OURO, pág 126 

5 comentários:

  1. Olá, amigo poeta.
    Uma semana linda para você abraços , Evanir.

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  2. Olá, amigo. Boa noite! Adorei o texto. Deixei me levar pela imaginação... perfeito!! Obrigada por partilhar. Agradeço o carinho da sua visita e gentis palavras! Grande abraço e ótima semana.

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  3. Excelente texto ! Lindo o Poema "Marinheiro "!
    Uma boa semana

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  4. que boa partilha, há quanto tempo! :-)

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  5. Oi Vieira,
    Gostei do texto, bem construído.
    O Poema Marinheiro ficou maravilhoso nessas imagens. Parabéns!
    Abraço!

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