TUDO É REDONDO

Fez-se um silêncio aparvalhado; passou o pasmo pelos circunstantes, dúvida, incredulidade.

- Isto... - disse de seguida - cada um, toma para si... os deuses que melhor lhe servem!... Mas... veja esta coisa extraordinária!

- Espere! - pediu o biólogo, perplexo. - Como é isso?

- Deixe-me continuar... - fez o cartógrafo, com um aceno de mão. - Presumo que... nunca... em tempo algum... os habitantes da Ilha das Árvores as tenham confundido com as unhas-dos-pés do Deus-bom, pelo simples facto de que o Deus-Bom, para eles... é a Noite! - depois, dirigindo-se ao capitão. - Aquele felino que nos atacou, lembra-se?, a eles nunca o poderá fazer, visto que só saem de noite. Lá cima, nada, a não ser eles, tem acesso, subindo pelos galhos que eles próprios aí colocaram. Não são assim tão brutos e ignorantes como o senhor diz... - entoou a palavra "bruto" com um estranho timbre que ninguém soube o que queria dizer e voltou ao mesmo tom enigmático, para referir os corpos celestes.

» O mais importante... é que aqueles brutos entenderam desde sempre e muito melhor que nós, a forma dos corpos celestes. - interrompeu-se para recuperar o sopro, prestando pouca atenção às reacções dos outros e concluiu: - Eles são esféricos!

- Esféricos?!... Esféricos, como? - disse um deles, abanando a cabeça e lembrando-se da velha história do mundo plano suspenso das conchas do céu, na junção das conchas.

Ressoou um frisson pela sala. A revelação roçava os contornos do ininteligível. Tivessem eles vivido nas remotas Índias e espantar-se-iam ainda mais, por ouvir afirmar que a Terra está empoleirada em cima de elefantes... por sua vez empoleirados noutros elefantes... e assim por diante...

- Diz-nos então que o Sol não é um disco?! - perguntou o armador, incrédulo.

- Isso mesmo! O Sol, as Luas, as Estrelas, o nosso próprio Mundo, são esféricos!

- Como posso eu ter a certeza de que isso é assim?

- Como pode ter a certeza?... Olhe... é simples! - respondeu o sábio, rindo. - Pode fazer a experiência. Se o senhor mandar o nosso ilustre Capitão navegar sempre em frente, numa das suas caravelas... ele voltará  ao ponto de partida... depois de ter dado a volta ao Mundo!...

- Espere! - interrompeu o capitão, deveras intrigado. - O Mundo é redondo... Quer o senhor dizer que o mar também o é?

- Claro que sim! É o que acabo de afirmar.

- Essa agora!...

- Atrevo-me a dizer mais... Tudo é redondo. A nossa própria vida é redonda!... Parte-se do infinito obscuro pré-natal, segue-se em frente, sempre para diante... e vamos dar ao princípio, ao mesmo vazio sem fundo... igual ao tempo sem data que nos antecedeu, antes que tivéssemos nascido...

Já era demais, embora transparente como o céu limpo.

- Sustenta, pois, que o mar é redondo... - volveu o empresário, pouco interessado no princípio e no fim das coisas. - Como sabe isso?

- Acontece que tive acesso a um texto já antigo, onde alguém, anterior a nós, já tinha chegado a esta soberba conclusão. O seu autor foi aquele que ficou conhecido para a posteridade por "sábio da luneta", o primeiro a ter a ousadia de enfrentar a Noite...

- Quer dizer... que esse texto tem permanecido em segredo?!

- Sim. Tem permanecido em segredo. Segundo julgo, haverá um exemplar guardado nos arquivos estatais do Reino do Norte... Um outro, e julgo que terá sido o único que escapou à rapina da censura real e eclesiástica, está nas mãos dum outro grande sábio, das minhas relações... Tive o supremo privilégio de a ele ter tido acesso... A religião oficial cerceou-nos um avanço científico de uma ou duas centenas de anos. Sabemos agora - rematou o cartógrafo - que para além das ilhas que descobrimos, haverá certamente outras, em todas as direcções, com outras árvores, outras gentes, outros deuses, outras inimagináveis riquezas...

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em A FEBRE DO OURO, Pág 153

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Desejo um Bom Ano 

a todos os meus leitores.