quinta-feira, 13 de outubro de 2011

A FEBRE DO OURO (excerto)


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O vento é o fogo primordial. Dele se alimentam os caminhos do mar, perpétuo e livre. Na ɛ de Eridanus, pelas aves se tomou conhecimento de outros voos possíveis, para além do espaço circunscrito das terras, o fluido azul dos oceanos, o éter do vazio anónimo e tranquilo entre as estrelas. As velas enfunadas imitam as suas asas, os sonhos de infinito. A direcção do vento mostra o caminho. Essa é a vontade dos deuses.
E assim, quando o veleiro ficou pronto – ainda um ano não era passado –, o capitão contratou os mais destemidos e os mais desesperados – os que nada tinham a perder, mesmo perdendo a própria vida!...– e zarpou pelo mar adentro, direito à linha do horizonte.
Não tinha sido difícil contratar semelhante marinharia: os desgraçados, os desenraizados, os párias, não temem deuses nem demónios; odeiam ou menosprezam tanto uns quanto outros. Ou ignoram-nos, de ser ignorados ou menosprezados. E agora, pela primeira vez juntos em torno dum objectivo de que mal conheciam os contornos – apenas, talvez, um íntimo "desejo de vinganças..."–, enfrentariam os monstros do fim do mar que povoam o limite do horizonte, lá, onde se decide o destino da Criação, das ervas e das árvores, dos bichos menores e maiores. Doravante, senhores de todos os símbolos que fazem os golpes de audácia e de loucura, eles próprios seriam parte dessa luta: a que se iria travar entre a claridade e as trevas, entre eles e eles próprios, entre o medo e a força oculta que há no coração do ser pensante e que sempre se esconde, de procurar entender-se.
Ou entendê-la-iam?
Sabê-la-iam, ainda que sem a saber?... Qualquer coisa que se acende e apaga, e vai e vem, incendiando-se e fenecendo como uma luz, mais sombra que luz, enredando-se, desmultiplicando-se até ao caos da hipnose e do delírio?
Doravante, enfrentariam deuses e demónios que, pela sua força (e seu medo...) cairiam a seus pés, sem remissão ou pecado. Doravante, o futuro abrir-se-lhes-ia pela frente, como o passado sem tempo; e o futuro era aquele mar sem fim, onde haveria de haver outros mundos de esperança, outros deuses sem pecado, e outras "balbúrdias da alma". Era "ir... ir até à distância abstracta ", que começa e acaba num sonho de infinito.
Estava-se em fins de Verão. Um dia sem mácula, benquisto e amável; manhã de tonalidades mornas, uma doçura que desvanece a lassidão do tempo, deixando antever o esmalte iridescente dos outonos meridionais. O Sol assomara já, com todo o esplendor, na concha diáfana e azul que encerra os mistérios do que está por cima. Limpo e leve o céu; apenas uns rolos de nuvens brancas sobre a montanha – cúmulos anunciadores de bonança – flutuando nos mares celestes, lembrando espuma. Desde a véspera o vento soprara fácil e silencioso, de Norte, sussurrando sobre as velas do navio, ensaiando os primeiros acordes da sinfonia triunfal do mar:
 .
                   "Quando ao sol-posto o norte é puro
                    tens bom tempo seguro!..."
 .
Assim fora com Eanes, Zarco e Bartolomeu. Assim o era naquela pérola azul da Eridanus e em todas as outras da Galáxia, no Triângulo, na Andrómeda, na NGC 1255, no Pégaso.
Agora ou logo. Ou no passado.
(…)
             em A FEBRE DO OURO - o meu mais recente livro (excerto)

5 comentários:

  1. Fico fascinada quando alguem consegue, quer seja através da prosa ou da poesia, e duma maneira tão perfeita passar para o papel, tudo aquilo que a sua imaginação idealizou!
    Se já era sua seguidora na poesia, vou-o ser de certeza também na prosa!
    Abraço

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  2. Como vai Vieira?
    Legal seus textos. Gosto muito de lêr e encontrei nesse espaço muita coisa interessante que vale a pena lêr. Coisa rara na rede atualmente.
    Estarei seguindo e acompanhando seu trabalho. Se desejar conhecer meu projeto no Construindo História Hoje. Fica aqui meu convite: http://www.construindohistoriahoje.blogspot.com
    Saudações cordiais.
    Leandro CHH

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  3. nunca tinha visitada este teu cantinho, imperdoavél eu sei, mas digo-te que adorei,sem divida que a tua escrita prende.
    bjs

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  4. Olá, amigo!
    Também veio-me o irresistível desejo de vir até a tua galáxia tão rica, tão leve, tão bela...assim, como um flamboyant na sua florescência esplêndida.
    Adorei! Obrigada pela visita!Beijinhos!

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